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Vetor Interviews: Star Amerasu

SEM DESCULPAS, SEM LICENÇA, SEM VERGONHA

Texto e entrevista por Alexandre Mortagua


Fotografia por Alexandre Toffoli


Janeiro de 2021. Itaim Bibi, São Paulo. Foi no pátio do Centro Cultural da Diversidade que conheci Star, sentada - sempre sorridente - ao lado de um pôster de “Não é o homossexual que é perverso, mas a sociedade em que ele vive”, filme do alemão Rosa Von Prauhem. Eu conheci o trabalho de Star três anos antes, apresentado ao ironicamente poderoso vídeo de “Meg Ryan”, de seu álbum de estréia, “Rebecca”.


"E eu estava em Seattle, pensando sobre o privilégio branco e, por estar no noroeste do Pacífico dos Estados Unidos, há muita gente branca. E eu estava escrevendo sobre minhas experiências com o desejo de voar. Foi exatamente daí que a música começou. Eu estava escrevendo sobre o desejo de voar."


Tão vívida do alto de seus 29 anos, Star me contou do álbum que estava gravando com uma produtora brasileira, respondeu algumas perguntas curiosas que seu “Rebecca” provocou em mim e, logo antes e em seguida também, me embasbacou enquanto emergido no feitiço daquela artista preta que entoava com tanta segurança “I'm a white woman, I can do whatever I want”.


Fotografia por Alexandre Toffoli


Ali, no Centro Cultural da Diversidade, que estava de portas abertas mas sem nenhuma cultura ou diversidade, que Star me lançou um feitiço muito parecido e bem diferente do que lança todas as vezes que sobe num palco. Um feitiço mais forte e de ingredientes mais antigos que o entretenimento, capaz de criar um laçarote vermelho e pomposo para adornar qualquer relação: uma “colaboração”.


Preenchendo os vácuos com a própria arte, Star estava se preparando para lançar o ótimo “Hopefully Limitless” e vomitar um pouco o que lhe enjoava o estômago. “Fantasy” foi nosso primeiro lugar em comum, o primeiro decanter: enquanto Star cantava sobre o homem que sumiu depois de um convite para morarem juntos, eu dirigia a celebração-fúnebre que se tornou o vídeo que fizemos juntos.


“E acho que quando fiz aquele álbum, o estado emocional em que eu estava era realmente vivenciar cada detalhe das músicas que eu cantava, sabe? Eu estava naquele estado, naquele sentimento de quando estava no estúdio, era o mesmo de quando compus as músicas. Minha vida não tinha mudado tanto naquele momento. Tipo, eu estava ali.”


Acompanhar uma artista para além da fase da vida que ela se encontra é um privilégio: é no passar do tempo que se apruma e organiza a obra artística e o patrimônio intelectual que a falta produz. Enquanto tenta-se preencher o vazio, é possível olhar bem no fundo dos olhos do abismo e é ali, lá para trás, que se entende a história para além do capítulo. Ler este livro é uma sorte, para além de um privilégio: é da beleza de um Taj Mahal ver acompanhar o que nossos amores fazem com o que a vida faz deles.


Star era uma festa quando nos encontramos no final de 2022 e a festa foi do bairro da Vila Buarque até Itaquera. Naquele dezembro, Star e eu dançamos até trançar as pernas no festival Batekoo, e eu posso jurar que vi seus olhos brilharem a todo momento ao provar do molho preto-latino, tão diferente do african american que estava acostumada. Os latino babes mantiveram aceso o fogo do interesse e da curiosidade, muito mais quente e de olhos muito mais abertos do que aquele óleo viscoso que nos revirou os olhos no festival.


Fotografia por Alexandre Toffoli


“Acho que minha vida é definitivamente muito diferente do que era. Estou sóbria. Eu não estava sóbria naquela época. Eu tinha um problema com remédios, como Klonopin (Clonazepam). Escrevi uma música sobre tomar remédios. Hoje em dia, é tão diferente. E acho que o que eu achava que poderia alcançar naquela época é que já passei ultrapassei, sabe? Acho que meu objetivo em determinado momento era só conseguir pagar o aluguel dos meus shows, o que é realmente difícil de fazer nesta economia. Mas tive vários anos conseguindo fazer isso agora. E me sinto confiante, 'ok, eu consigo dar um jeito'."


Nosso reencontro em janeiro de 2025 era uma promessa de continuar queimando o fogo da nossa colaboração. Agora, Star divulga seu novo “never, really alone” e invade, com muita classe, o cinema: seu curta-metragem “After Hours”, com produção executiva de Elliot Page, viaja entre festivais e mostras de cinema estadunidense. Ah, sim, Star é norte americana. Enquanto os Estados Unidos desmantelam os direitos das pessoas trans, Star persiste em sua busca de uma pista de dança quente, inclusiva e cheia de calor. E nisso, o Brasil, meus caros, é ótimo professor.


Entre todas as nossas diferenças, nos encontramos em fevereiro para insistir no que temos em comum: a vontade de casa fora de casa. A Bigorna, festa que João Rigoni e eu carinhosamente produzimos, é nosso exercício de pertencimento, de fazer festa com o que resta. E lá estava Star mais uma vez. No seu primeiro show no Brasil, carinhosamente entregue à pista que estamos construindo, Star esteve em todos os lados, em cima e embaixo daquele inferninho no dia 14 de fevereiro de 2025. Em determinada altura, pergunto a Star de sua primeira experiência clubber: ela tinha 16 anos e foi com o amigo Reno a uma boate em Austin, no Texas.


Fotografia por Alexandre Toffoli


Fazendo as contas - e entregando a idade da minha amiga -, isso foi em 2008. O que também aconteceu em 2008? Estamos há pouco menos de quinze dias do Gagacabana e o sonho,

embora esteja apenas começando, já acabou. Já se vão dezesseis anos que Star dançava com Reno pela primeira vez, e outros dezesseis anos do lançamento de “Just dance”, de Lady Gaga. Você lembra o que fazia e onde estava em 2008?


“E eu estava ficando magra e naquela era de "I'm going to get hot". E eu ouvia "The Fame" do começo ao fim. Era meu álbum de exercícios. Eu estava em Walla Walla, Washington. Naquela época da minha vida, minha mãe morava lá e eu a visitava durante o verão. Eu estava morando com pessoas da minha igreja, do meu grupo de jovens. Acho que muitos de nós, pessoas queer, passamos por esses momentos difíceis na adolescência por algum motivo com nossos pais, porque acho que pode ser difícil para alguns pais aceitarem o fato de que seu filho, que era como uma criança pequena, agora está crescendo e se tornando a pessoa que eles querem ser.”


“Se tornando a pessoa que eles querem ser”. Eu lembro de ouvir essas palavras pela primeira vez numa música de Lady Gaga. Quero dizer, ouvir essas palavras como um jovem gay que precisava de uma figura materna para além daquela que proferia impropérios ao adolescente que desmunhecava, fazia teatro e, bem, gostava de meninos. De visitante ao lar materno, Star também bebia da fonte inesgotável de liberdade que o “The Fame” provoca, enquanto tornava-se quem era.


Parece simples o exercício de quem olha de fora, mas ser quem se é doi na cabeça e alivia nas costas. Um exercício que os jovens cisgêneros e heterossexuais não estão acostumados a experimentar. Talvez, só talvez, por isso, nós, os que desafiam qualquer regra sob o número 2, somos sortudos.


“Já estive em todos os lugares. Sou uma boneca global. A questão é a seguinte: o mundo é um lugar enorme. E tem gente queer em todo lugar. E minha mãe nunca foi a lugar nenhum quando éramos jovens. Só viajamos por todos os Estados Unidos. Tipo, nos mudamos. E eu sempre pensava: "Por que não saímos do país?. Temos que sair daqui. Tipo, vamos tentar alguma coisa, ver alguma coisa.”


Fotografia por Alexandre Toffoli


Lá pela altura do ARTPOP, o mundo já sabia que Lady Gaga não era só uma artista pop. Ela era, sobretudo, um projeto político. De salto alto e cabelo loiro, sua imagem provocava, confundia e, acima de tudo, libertava. Enquanto Star se refugiava em igrejas e grupos de jovens no interior dos Estados Unidos, Gaga ocupava o palco do VMA em trajes de carne, desafiando não só a moda, mas os códigos de respeito e pertencimento impostos às mulheres — especialmente às que, como ela, ousavam performar com masculinidade, extravagância e autonomia. O gesto, simbólico e literal, de vestir-se com o que o mundo consome, virou um marco. E é nesse gesto que talvez pudemos ver um espelho retrovisor entre ela e Star Amerasu: ambas constroem com o corpo e a imagem um novo alfabeto de leitura para a diferença.


Gaga abriu portas que Star escancarou. Enquanto a primeira gritava “Born this way” nos alto-falantes de uma geração em busca de espelhos, Star nos convida para dentro, nos faz sentar na

sala e escutar suas feridas com o mesmo fone de ouvido. Se Gaga performa a explosão, Star nos conduz ao silêncio após o impacto. E talvez seja justamente essa a principal potência de suas trajetórias cruzadas: onde uma ilumina, a outra aprofunda, como um mergulhador em direção ao mar abissal. Star é filha de Gaga, mas também sua continuidade — uma linhagem queer de resistência que se retroalimenta entre as batidas da dance music, as comunidades que criaram a house music e os ruídos do cotidiano.


Não é coincidência que ambas tenham encontrado na música eletrônica o espaço seguro para a reconstrução de si mesmas. Para Gaga, o house e o disco foram refúgios desde os tempos dos clubes nova-iorquinos, muito antes de “The Fame”. Para Star, a música eletrônica se revela como uma cápsula de tempo e uma cápsula de fuga — um lugar onde pode reimaginar sua identidade para além das dores e violências que atravessa como mulher trans, negra e artista independente. As pistas de dança, nesse sentido, não são apenas espaços de prazer, mas arenas políticas onde corpos dissidentes podem existir com desejo, fúria e vulnerabilidade.


Fotografia por Alexandre Toffoli


E é bonito perceber como, em momentos distintos da história recente, as duas articulam esse mesmo desejo: o de existir plenamente. Gaga fez isso para os holofotes. Star faz isso entre os refletores de um show pequeno, num festival underground, numa conversa de WhatsApp às três da manhã. Ambas performam o desejo de continuidade — Gaga com seus shows monumentais e manifestos em forma de disco, Star com seus vídeos caseiros, seu cinema artesanal, suas entrevistas em que fala do passado como um caminho em constante reescrita.


Enquanto Gaga foi elevada ao status de ícone global, Star constrói uma mitologia intimista, feita de colagens, vozes sussurradas, desabafos e um senso de humor contagiante. O impacto de Lady Gaga no mainstream abriu espaço para que artistas como Star Amerasu não apenas existissem, mas fossem ouvidas. E Star, por sua vez, amplia esse espaço ao colocá-lo em xeque: seu trabalho não é sobre ocupar um lugar, mas sobre criar um novo — mais justo, mais verdadeiro, mais seu. Ela não quer só entrar na festa. Ela quer mudar a música que está tocando.


Por fim, talvez a relação entre Star e Gaga esteja naquilo que não se pode nomear. Um gesto, um olhar, uma nota que ecoa diferente para quem cresceu se escondendo em banheiros de escola, dançando em segredo no quarto, ou apagando partes de si para caber. A música das duas é esse abraço invisível que une gerações de pessoas queer, negras, latinas, trans, marginais e mágicas. Gaga pode ser a mãe pop. Star, uma irmã mais velha que segurou sua mão quando tudo parecia escuro demais. E juntas, elas continuam nos dizendo que, mesmo que o mundo acabe lá fora, a pista de dança segue viva — e cheia de possibilidades.


Por fim, talvez a relação entre Star Amerasu e Lady Gaga esteja justamente naquilo que só a arte é capaz de traduzir: a possibilidade de criar mundos novos enquanto se caminha pelas ruínas do antigo. Em cada fase da carreira de Gaga, é possível enxergar espelhos, contrastes e diálogos com a caminhada de Star — não como cópia ou continuidade linear, mas como reverberações que se transformam, se cruzam e se expandem.


Fotografia por Alexandre Toffoli


Se The Fame foi o grito inaugural de Gaga, o anúncio em glitter de que o pop também poderia ser bizarro, teatral e politizado, para Star, Rebecca cumpriu função semelhante: um disco que nasceu da dor, mas que se comunica com um senso de humor ácido e uma estética que desafia o que se espera de uma artista preta e trans. Em ambos, há uma pulsão de vida que resiste ao apagamento — Gaga de forma bombástica, Star de forma íntima, quase como quem sussurra um segredo para todo mundo ouvir.


Born This Way talvez seja o ponto mais direto de conexão. Quando Gaga escreveu seu manifesto pela liberdade queer, Star ainda atravessava anos confusos da juventude. Aquele disco foi não só um hino de autoaceitação, mas também um abrigo — e é emocionante pensar que, anos depois, Star se tornaria ela mesma uma criadora de abrigos, oferecendo em sua música lugares onde a dor e o prazer podem coexistir. A canção “Fantasy”, por exemplo, tem a mesma função de um “Hair” ou “Marry the Night”: transformar abandono em beleza, perda em catarse.


Em Artpop, Gaga mergulhou na fragmentação, no excesso, no colapso emocional — tudo embrulhado em batidas eletrônicas futuristas. Star faz o mesmo em Hopefully Limitless, onde a produção eletrônica é o invólucro para letras que transbordam trauma, vício, lucidez e cura. As duas artistas, cada uma a seu modo, usam o artifício da dança para dizer o indizível. A diferença está na escala, não na potência.


Com Joanne e Chromatica, Gaga encarna a perda, a reconciliação com as origens, o retorno à dor do corpo. Star, nesse mesmo tempo, já havia exposto suas vísceras em vídeos auto-dirigidos, em textos, em colaborações com artistas brasileiros e com o próprio cinema — como em seu curta-metragem After Hours, que, assim como Chromatica, parte da escuridão para criar um espaço sonoro onde sobreviver se torna um ato estético.


Fotografia por Alexandre Toffoli


E agora, em 2025, com o lançamento de never, really alone, Star parece conversar diretamente com a Gaga que acaba de pisar na areia de Copacabana. O show do dia 3 de maio — carinhosamente apelidado de Gagacabana — não foi apenas um marco na história da música pop: será uma oferenda.


Uma mulher que cantou sobre liberdade queer nos anos 2000, agora, ao ar livre, à beira do Atlântico, num país que tem matado e exilado suas filhas trans e pretas. Gaga desceu da divindade do pop para tocar o chão da praia; Star sobe do underground para fazer do chão palco, festa e fogueira. E ambas nos ensinam que a liberdade, essa palavra tão dita e tão difícil de viver, talvez só seja real quando dançada.


O show de Gaga em Copacabana foi, para muitos, uma catarse coletiva. Mas para pessoas como Star, e para todos que se veem nela, será também um ponto de chegada — e, com sorte, um novo ponto de partida. A pista, aqui, é um templo.

 
 
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