Vetor Entrevista: Catto
- vetormagazine
- 6 de ago.
- 6 min de leitura
Em seu novo disco, Caminhos Selvagens, a cantora se torna uma versão platinada de si mesma, resgatando suas origens como uma partygirl em oito músicas regadas de influências roqueiras
Texto e entrevista por Pedro Paulo Furlan

Fotografia por Ivi Maiga Bugrimenko
São Paulo, 18h. Quando eu me sento para conversar com Catto, faltam apenas algumas horas para o lançamento de seu mais novo álbum de estúdio, "Caminhos Selvagens". O primeiro disco de músicas autorais da cantora gaúcha em oito anos, este projeto, nas palavras da artista, “não tem nenhum compromisso com a cisgeneridade, com a heterossexualidade, com a cultura vigente".
Com mais de 15 anos de carreira, Catto age como tal, sem nenhum pingo de nervosismo com o lançamento que bate à sua porta. Completamente certa de todas suas decisões e da personagem rebelde que interpreta ao longo de "Caminhos Selvagens”, Catto apresenta o projeto com total noção de suas influências e da sonoridade que ela entrega.
“Ela é a sua amiga de olho de gatinho, que está maluca e fazendo merda”, explica Catto sobre a personagem que ela encarna no seu novo disco - que é, com certeza, parte dela mesma.

Fotografia por Ivi Maiga Bugrimenko
Agora, com quase dois meses desde o lançamento, a cantora conseguiu o que queria - com diversos shows já feitos e inúmeros elogios da crítica, "Caminhos Selvagens” se prova um dos discos mais fundamentais da carreira de Catto, além de oferecer algo completamente novo para a cena musical brasileira, puxando de referências como The Smiths, PJ Harvey e Courtney Love.
“Celebrar como um ato de rebeldia e resistência”
Após lançar seu primeiro disco em 2009, "SAGA", Catto foi cada vez mais abraçada como uma das promessas da MPB, trazendo suas influências da música brasileira mais clássica na manga. A artista, que adentrou esses círculos, com turnês, entrevistas na TV e participações em diversos festivais, conta-me que esse momento foi um “experimento de vida” - mas, que ela se sentiu puxada a retornar para suas origens: ”se inventar, beijar todo mundo, botar para quebrar”.
“Depois da pandemia, eu estava louca por uma pista de dança", ela afirma, contando que a persona de "Caminhos Selvagens” começou a ser lentamente construída com o seu retorno para a noite, mesmo que, na verdade, o álbum já estivesse sendo produzido desde 2018.

Fotografia por Ivi Maiga Bugrimenko
Citando, como influência para essa volta, a drag queen e estrela da noite Alma Negrot, que também cuidou dos visuais deste disco de Catto, a cantora e compositora relata que ela “resgatou em mim a Catto adolescente”. Nesta movimentação, a artista também se tornou DJ da festa Alicate em São Paulo - todas essas experiências as quais ela credita por fazer o álbum ser o que é.
“A boate é sempre onde a gente vai se sentir aceito, é o lugar que a gente usa para se experimentar, é onde a gente usa nossos primeiros saltos, onde a gente bota nosso primeiro batom, é ali onde a gente constrói muitas vezes como pessoa LGBT a nossa verdadeira identidade”.
Mulher trans, Catto afirma que, para ela, “a gente celebra como um ato de rebeldia e resistência”, declarando que uma de suas partes favoritas de fazer parte da comunidade é justamente essa: ter acesso a este espaço transformador e acolhedor que é a noite. “Meu trabalho é intimamente ligado a isso, mesmo que eu não faça música de pista. É o universo em que eu habito", diz ela.

Fotografia por Ivi Maiga Bugrimenko
Em "Caminhos Selvagens", Catto relata amores passionais, términos profundos, noites de festa e autoexploração, tudo isso por cima de uma sonoridade de rock que tece, em torno do ouvinte, seu próprio universo. Com esse som único, que puxa de influências desde o feminejo a PJ Harvey, a artista conta sua própria história, explorando, ao mesmo tempo, a narrativa de diversas pessoas da comunidade LGBT+ que já viveram de loucura, de ressaca, após um after.
“Me sinto mais filha do que mãe, sabe?”
“Fazer parte da nossa comunidade fez com que eu encontrasse a minha verdadeira família”, afirma Catto. Após sua transição, que aconteceu em público, já uma artista, a cantora afirma que foi estando no meio de outras pessoas e artistas trans que ela conseguiu o esclarecimento que tanto buscava.
“Poder estar junto das meninas na pista de dança, a gente conversando, olhando para bofe, rindo, fresquiando, saindo para tomar cerveja, uma pega cigarro da outra, cara, eu amo, eu amo, amo, amo - sou muito feliz de ser uma pessoa LGBT, e não só, uma monstrona queer”.

Fotografia por Ivi Maiga Bugrimenko
Foi desse esclarecimento que nasceu "Caminhos Selvagens", no qual ela assume o papel de si mesma, em sua forma mais completa, intensa e sentimental - com coragem para abrir todas as partes de si mesma. Quando pergunto o que a inspirou a se apresentar dessa maneira, Catto me responde, homenageando suas irmãs trans novamente: “Tenho a oportunidade de trocar com um universo que me torna abertamente ousada. Me sinto bem mais filha que mãe, sabe?".
Nos visuais de seu novo álbum, Catto, sempre morena, se apresenta loira, platinada, uma barbie completamente fora de si, como explica a mesma. Com a beleza, fotos e vídeos, Catto apresenta essa criatura que vive na noite, trazendo sentimentalidade e vulnerabilidade para uma figura há muito tratada de maneira jocosa pela cisgeneridade.
“Ser ousada vem justamente do ambiente em que eu vivo", ela explica: “Estou sempre na beira da estrada, fumando um cigarro, e penso que poderia ser qualquer menina fazendo um programa, porque o mundo me olha assim, mesmo que eu seja uma cantora. Isso não importa, o mundo cisgênero não nos vê como a gente quer - então, não tenho compromisso com ele".
“Caminhos Selvagens me botou de frente com a minha feiúra”
“Quando uma mulher está na merda, a primeira coisa que ela faz é ficar loira, quando uma mulher quer dar a volta por cima e fazer um grito de vingança", Catto me responde quando pergunto para ela o porque ela tinha que ser loira - mas, na verdade, essa é uma resposta em duas partes.
Além da faceta do mundo físico, "Caminhos Selvagens” também representa uma espiritualidade para Catto - que traz sempre consigo suas crenças como bruxa. “Sempre trabalho com essa ideia de Vênus, por ser libriana, mas, tem uma Vênus Lúcifer que é citada em ‘Caminhos Selvagens’, a estrela escarlate da manhã resplandecendo em chamas”, ela explica.
“Ela é, para mim, a essência perdida daquela pessoa que está soterrada dentro de ti, de teus mais profundos abismos, que você tem que pegar na mão dela e trazer ela para a luz, para, aí sim, você virar uma estrela. É um resgate mitológico”.
Abraçar sua verdadeira essência foi um processo complicado para Catto, ela me conta que haviam dias em que ela ia para o estúdio gravar, mas, chorava tanto que não conseguia. “Caminhos Selvagens me botou de frente com a minha feiúra”, diz ela, afirmando que foi através desse processo que ela aprendeu a se auto superar, conseguindo - aos poucos - completar esse projeto que a forçou a se acostumar a "me testar o tempo todo”.
“Goste ou não goste, essa sou eu, sou singularidade”

Fotografia por Ivi Maiga Bugrimenko
Dois meses após lançar esse disco, Catto se encontra em um novo momento de sua carreira - no meio de uma turnê e com cada vez mais pessoas conhecendo a artista por completo. Em faixas como "Madrigal” e "Para Yuri Todos os Meus Beijos", Catto se supera em quesitos de talento vocal e composição, apresentando essa criatura cada vez mais poderosa.
“Somos autênticas por sermos singulares. O ‘Caminhos Selvagens’ é um disco que eu fiz em busca dessa singularidade, sabe?", afirma ela, refletindo sobre o espaço que suas experiências queer tomam neste disco: “Gostou? Que bom, não gostou? Foda-se, feito, não estou te pedindo licença para ser quem eu sou”.
“Acho que sinto isso porque eu tenho ao meu redor pessoas que me abraçam sem nenhum julgamento, e que torcem pela minha felicidade", aponta ela, afirmando que o álbum representa, para ela, a pessoa que esses amigos a sua volta já conhecem, mas, que ela está apresentando ao público pela primeira vez.
Abraçando sua dissidência, Catto oferece "Caminhos Selvagens” como uma homenagem a ela e outras como ela. Mergulhada até o pescoço em drama e rock n’roll, a artista conta uma história da noite e comunidade LGBT+, abraçando suas vulnerabilidades, imperfeições e o poder que vem de tudo isso pelo caminho - e encorajando outras a fazerem o mesmo.
"Sou muito orgulhosa de ser uma travesti brasileira, e tenho muito orgulho de ter todes junto de mim. Gosto muito de ser uma formiguinha dentro deste formigueiro - quando estou na pista de dança, sou mais uma pessoa sedenta a encontrar o êxtase divino que é estar em comunidade”.


